quinta-feira, janeiro 05, 2012

Origens e filiações da festa de Sobrado

Prosseguimos e terminamos a parte dedicada por Rodney Gallop à Festa de S. João de Sobrado, no seu livro, editado em 1936, "Portugal, a Book of Folk Ways":
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Uma tão complexa representação/performance como é a Mouriscada apresenta um certo número de dificuldades para o estudioso do folclore. Na sua forma actual,  ela é claramente um aglomerado de diferentes aspectos,  os quais nem todos estiveram sempre ligados. Trata-se, em primeiro lugar - e isso parece seguro -  de um ritual de fertilidade agrícola. A altura do ano desta performance fornece ampla prova disso mesmo e a confirmação advém de uma manifestação paralela bem curiosa, que tem lugar ao princípio da tarde. Depois de os Mouriscos e Bugios terem feito a sua entrada solene na aldeia (1), mas antes de começarem as suas danças, um dos Bugios anda pela aldeia montado num pequeno cavalo, sentado ao contrário, e lançando sementes de linho (2). O mesmo terreno por ele percorrido é, de seguida, gradado e, depois, lavrado, com dois burros cuja canga é colocada por baixo, de modo que fica dependurada por baixo do pescoço. Antes de chegarem à zona verde do largo, o arado tem de estar feito em pedaços. Tudo isto é feito em ordem inversa e parece ser um processo de 'magia imitativa' que actua por inversão. Os Mouriscos e a Serpe devem ter sido herdados da procissão de Braga ou de algum cerimonial anterior que tenha dado origem a ambos. Os primeiros são seguramente  um grupo de dança de espadas cuja representação ainda é associada à teatralização da morte e ressurreição, que bem pode ter sido a razão original da respectiva existência. Os adereços que os Bugios trazem parecem relacioná-los com agrupamentos medievais de dançarinos; contudo os seus trajes e movimentos grosseiros ligam-nos a outros dançarinos rituais (3), como os Noirs das Mascaradas bascas, enquanto que as suas máscaras de animais e o rei não mascarado se assemelham à festa dos rapazes de Bragança. O nome que lhes dão não ajuda a esclarecer a questão: o seu significado primeiro  é macaco, enquanto que o significado secundário é pantomineiro ou bufão (4).
Falta explicar a batalha entre os dois exércitos. Foi dito atrás que entre as danças que cairam em desuso em Arcozelo da Serra havia uma que simulava um combate entre portugueses e espanhois. Um britânico há muito residente no Porto disse-me que na sua juventude não era de todo invulgar nas zonas rurais à volta da cidade encontrar grupos de mascarados a representar uma batalha entre Mouros e Cristãos. Tais simulacros de combate são também conhecidos noutros países. A Moreska da Damácia é um desses casos e tais batalhas são frequentemente o número principal das representações de danças mouriscas. A opinião local explica invariavelmente que tais danças surgiram para celebrar a vitória em guerras contra os Mouros. Mas é muito mais provável que elas se relacionem com batalhas rituais entre o Verão e o Inverno, de que um exemplo sobreviveu até um pouco mais de um século atrás tão perto de nós como a Ilha de Man, o que só pode ser explicado como um ritual agrícola de magia por simpatia, em ordem a assegurar o triunfo da vegatção sobre o definhamento.
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Notas do texto:
(1) São recebidos à porta do adro pelo sacristão, com uma caldeirinha de água benta que entrega a cada um dos reis juntamente com um ramo de oliveira com o qual estes últimos aspergem os seus homens ajoelhados.
(2) Apesar de ser linho, ele chama-lhe milho, sendo difícil de dizer se há algum significado especial por detrás desta troca.
(3) Na procissão do Corpus Christi de 1621, no Porto, "os pedreiros, canteiros e obreiros com o seu Rei e Estandarte davam uma dança, bem trajados, na forma de bugios, com instrumentos musicais que era costuma usar nessa dança" (Sousa Viterbo, Artes e Artistas em Portugal, p. 245). Vale a pena referir que  Sobrado fica perto das minas/pedreiras de Valongo.
A procissão que se fez em Lisboa, em 1619, em honra de Filipe II de Portugal e III de Espanha incluiu danças em que actuaram bugios (macacos) e papagaios. O uso da palavra espanhola monos (macacos) no poema escrito por Francisco de Arce nessa ocasião confirma a tradução acima de bugios (cf op. cit. pp. 250-5)
(4) Vale a pena referir que nesta representação  parece haver as duas danças cerimoniais distinguidas em  Orchésographie the Morisque and the Bouffons ou Dança dos Loucos, de Arbeau (séc. XVIII).

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