sexta-feira, dezembro 02, 2011

Entre 1750 e 1880:
danças da Bugiada também em Valongo


Ao longo de bem mais de cem anos, Valongo foi palco de uma grande festa que dois autores valonguenses, Francisco Ribeiro Seara e Lopes dos Reis, consideraram a "festa popular mais importante e mais signficiativa" do concelho e que incluía uma Dança da Bugiada.
Tive oportunidade de me referir a este facto aquando do acto comemorativo dos 175 anos da criação do concelho de Valongo, que decorreu na passada terça-feira, dia 29 de Novembro, numa iniciativa da Câmara Municipal, através do Arquivo Histórico do Município. E estou, naturalmente, a referir-me à festa de Santo António dos Almocreves, que tinha o seu momento alto no segundo domingo de Julho.
Que tradição era esta, então?

Uma festa dos almocreves

Podemos dizer que almocreve era o comerciante que, sozinho ou em grupo, percorria por vezes longos trajectos para levar e trazer mercadoria e, desse modo, assegurar o abastecimento dos aglomerados populacionais mais significativos. Desde a Idade Média até épocas não muito longínquas eles foram, no dizer de Borges de Macedo (1), «a coluna vertebral dos transportes internos».
A festa nasceu em 1750, no contexto de uma grande epidemia que começou a dizimar os animais de carga que eram "a alma de negócio" dos muitos almocreves de Valongo.
Ora, desde muito cedo, Valongo foi terra de almocreves que iam além-Marão e até ao Alentejo para abastecer as moagens de trigo e centeio e assim permitir a a panificação de que vivia boa parte da cidade do Porto. Já a Corografia Portugueza, publicada pela primeira vez em 1708, observava que Valongo (e mantemos a escrita da época) “[…) he povo grande e arruado habitado de muitas padeiras que sustentão o Porto de pão que elas lá levão a vender, e de muitos almocreves, que vivem de conduzir de muitas légoas o trigo para suas mulheres cozerem" (2).
Temos, pois, que a economia de Valongo vivia, em boa medida, dos almocreves e da panificação. E, aos olhos destes comerciantes Santo António foi decisivo para debelar o mal que deu nas bestas, pelo que decidiram honrá-lo e festejá-lo à altura do 'milagre' obtido.

Sumária descrição dos festejos

Seguindo a descrição que da festa faz, em 1904, o autor de "A Villa de Valongo", o P. Joaquim Alves Lopes dos Reis (3), os festejos arrancavam ainda no mês de Junho, na véspera de S. Pedro, dia em que se tornou tradição sair o Bando , que era um grupo de homens montados em jericos, à frente do qual seguia um pregoeiro a anunciar o programa que aí vinha. Mas era na quarta-feira anterior ao segundo domingo de Julho que o ambiente de folgança começava a animar-se. Nesse dia um burro percorria as ruas da terra distribuindo archotes que seriam usados na Cavalhada, na véspera da festa à noite. Esta Cavalhada metia bandas de música seguidas de cavaleiros com tochas a arder, o que deveria tornar o cortejo motivo de atracção. Houve quem visse neste acto um vestígio da procissão de agradecimento dos almocreves a Santo António.
No domingo da Festa, logo ao nascer do Sol, formava-se em casa do Juiz a Bugiada. Ao mais velho no ofício cabia designar o Juiz novo que era procurado e trazido na situação em que se encontrasse. Após isso, servia-se um lauto almoço. Deduz-se da descrição que nos chegou que havia, neste momento, a Dança dos Bugios. Só depois dela é que se formava o Tambo, um cortejo que se dirigia à igreja paroquial, onde se realizavam cerimónias religiosas. Findas estas, voltava a dançar a Bugiada em frente ao templo, a que se seguia o jantar. Diz-nos Lopes dos Reis que esta Dança da Bugiada junto à igreja era especialmente querida da população local, tal como a música que a acompanhava, a qual (a exemplo do que acontece em Sobrado, nos nossos dias) não podia ser tocada sem que as pessoas começassem a dançar também. Pelos vistos, a Dança da Bugiada de Santo António dos Almocreves tornou-se de tal modo marca da festa e valorizada pela população que havia gente importante que fazia questão de participar. E só quando a festa começou a decair é que a dança passou a ser participada sobretudo pela, digamos assim, arraia miúda.
A festa prosseguia na segunda-feira com o Jantar dos Cozinheiros participado por todos os que, de algum modo, tinham concorrido para a organização. E eram esses que, no fim do repasto, iam pelas ruas da vila, trajados de modo exótico (à turco, dizia-se), executando a Dança dos Odres. Dois dias depois, na quarta-feira,  a festa encerrava, finalmente, com actos na igreja, um jantar, desta vez pago já pelo Juíz novo, à porta do qual a Bugiada voltava a dançar pela terceira e última vez. Nesse dia à tarde, voltava-se a juntar muita gente da terra e de fora, porque havia como que a apoteose, com uma série de danças e entremeses, uma boa dúzia delas. À noite, ainda se realizava a Entrega do Santo, no qual, além dos membros das Cavalhadas, participava a mulher do Juiz velho, acompanhada de moças que empunhavam velas acesas.

Dois comentários

Este é um quadro rápido e sumário de uma festa rica e complexa que merecia ser mais investigada e estudada. Resta fazer duas ou três observações a propósito.
Em primeiro lugar, a festa entra em decadência na segunda metade do século XIX e acaba mesmo em 1880. E porquê? Lopes dos Reis não aborda o assunto, mas eu atrevo-me a deixar uma possível explicação. Em 1872, o Governo adjudica a construção da Linha (ferroviária) do Minho, a qual é aberta à circulação até Braga em 1875. Neste mesmo ano, entra em funcionamento um primeiro tramo da Linha do Douro, entre Ermesinde e Penafiel. A partir de então, estava aberta uma forma mais rápida e segura de viajar e fazer circular a mercadoria. O caminho de ferro, que representou um progresso extraordinário, representou o atestado de morte aos almocreves, pelo menos, nas zonas servidas pela rede ferroviária. O município de Valongo é, todo ele, à excepção de Sobrado, atravessado pelo comboio. Nesta nova situação, com os almocreves em crise e certamente á procura de novas formas de subsistência, não houve Santo António que lhes valesse e, assim, a festa desapareceu. Um pormenor curioso: as danças mais características da festa de Santo António, essas a população não as deixou desaparecer tão rapidamente: começaram a ser apresentadas na festa do padroeiro da vila de Valongo, S. Mamede. E isso prolongou-se por muitos anos.
A segunda observação é, naturalmente para chamar a atenção para uma série de sinais de aproximação entre a Festa de Santo António dos Almocreves de Valongo e o S. João de Sobrado. Claro: desde logo pelas danças da Bugiada e pelo papel de relevo que tinham na festa valonguense. Mas também pela música e o carinho que esta despertava na população e, finalmente, pelas "papeladas", que eram habitualmente, formas (escritas) de crítica social. De tudo isto encontramos algo em Sobrado. Muitas danças de Valongo, de resto, aparentam-se com manifestações típicas descritas nas procissões de Corpus Christi. O que me leva, de novo, a deixar no ar a hipótese de, tanto alguns aspectos das danças e lutas de Sobrado como várias das danças de Valongo poderem, em alguma fase do seu desenvolvimento, ter tido algum tipo de presença em alguma das procissões de Corpus que se fazia nesta região (nomeadamente no Porto e em Penafiel).
Muito que investigar e que estudar, por conseguinte.

Referências
(1) Borges de Macedo, J. "Almocreve" in Dicionário de História de Portugal (dir. de Joel Serrão)
(2) Costa, Ant. Carvalho da  (1708) Corografia Portugueza e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal, vol. II
(3) Reis, J. Alves Lopes dos  (1904) A Villa de Valongo. Porto:  Typographia Coelho (a vapor).

5 comentários:

tsiwari disse...

Realmente é espantoso o que o passado esconde. Estou em sintonia quanto à explicação avançada para o desaparecimento da festa - a linha do comboio.

Parabéns. Continuação de bom trabalho.

Manuel Pinto disse...

Para registo, deixo um comentário sobre este post inserido no dia 2.12 por Fábia Pinto na página da Festa de S. João de Sobrado no Facebook:

"Li o texto e não me saiu da cabeça algo que recorrentemente ouço entre os bugios ( em tom de escárnio). Passo a citar " Eles (os de Valongo) até quiseram levar a bugiada para lá...". Terá alguma ligação com a festa dos almocreves? Algo que passou na tradição oral de geração em geração e chegou aos nossos dias? Ou serão apenas" ressentimentos " mais recentes? Ficam as questões para quem as saiba responder..."

Joao Augusto Aldeia disse...

E a que propósito é que o senhor Palmeirim e os seus empregados, aqui muito aprumados no largo do Canino, em Sesimbra, aparecem associados a esta história? Penso que, pelo menos, as imagem deveria ser acompanhada dessa referência, já que não indica a origem da imagem.

Joao Augusto Aldeia disse...

E a que propósito é que o senhor Palmeirim e os seus empregados, aqui muito aprumados no largo do Canino, em Sesimbra, aparecem associados a esta história?
Penso que, pelo menos, as imagem deveria ser acompanhada dessa referência, já que não indica a origem da imagem.

Manuel Pinto disse...

Caro João Aldeia, agradeço o comentário. A imagem justifica-se como ilustração do que seria um almocreve. De facto, não está referenciada e atribuída, por ignorarmos a sua origem. O seu comentário pode ser considerado uma referenciação, o que agradeço.