A Dança do Cego também se chama Sapateirada. A designação depende, ao fim e ao cabo, da perspectiva: queremos ver as coisas do lado do Cego ou do lado do Sapateiro? Qualquer deles é peça-chave nesta componente da Festa de S. João de Sobrado.
Já descrevi esta representação do rapto da mulher do sapateiro pelo moço do cego e já propus uma interpretação, vendo nesta tradição uma luta entre os sedentários, de vida feita e definida, e os errantes, os que vagueiam de terra em terra. Gostaria hoje de chamar a atenção para outros aspectos.
Começo por notar que o sapateiro não exerce apenas o seu ofício. Ele é, na verdade, um gabarolas: não pára de enaltecer as "qualidades" da mulher que tem. Se o gesto é tudo, os gestos do artífice não enganam, quando apalpa as partes dela que mais lhe merecem apreço. Mais do que fiadeira, a esposa do sapateiro é (tem sido, pelo menos, nas últimas décadas) um símbolo sexual, o que contradiz um pouco o estereótipo de esposa.
Acontece que quem aparece a perturbar este estado das coisas é o cego. Guiado pelo seu guia, é verdade. Mas o guia simboliza os olhos do cego. Ele não vê as coisas do mundo exterior, mas vê melhor do que ninguém as do mundo interior, que é o espaço em que o sentido se constrói e se adquire a sabedoria da vida e, paradoxalmente, se faz luz. Por conseguinte, quando o moço do cego rapta a mulher do sapateiro, é, ao fim e ao cabo, no plano simbólico, o cego que a rapta.
O que sucede a seguir é interessante de analisar: quando o sapateiro dá pela falta da mulher e decide ir à procura dela, instala-se uma dúvida terrível: afinal, de quem será a culpa? Da mulher ou do seu raptor?
Aquele que momentos antes não parava de se vangloriar da mulher que tinha só poderia deitar a culpa para o moço do cego. Mas inúmeros circunstantes que testemunharam o que se passou aproveitam a ocasião para colocar 'sobre a mesa' uma versão radicalmente diversa: ela não foi raptada, mas fugiu, por causa da vida que o sapateiro lhe dava ou, na versão mais radical, devido à "incompetência" do sapateiro.
A terrível dúvida nunca chega a ser totalmente esclarecida, ainda que, depois de andar à luta de varapau, a mulher volte, por fim, para o sapateiro. E essa dúvida é, na verdade, uma questão existencial, que as aparências da ordem restaurada dificilmente podem apagar.
E o cego, no meio disto tudo? Ele é aquele que não vê ou aquele que vê (ainda que veja o que outros não vêem)? Sobre isso haverei de escrever numa outra oportunidade.
Que fique, entretanto, clara uma coisa: engana-se redondamente quem pense que esta "dança do cego" é coisa de primitivos e gente sem qualidades. Pelo contrário, esta parte da festa está carregada de significados que estão longe de se esgotar naquilo que aqui vou escrevendo. E esses significados também podem ser partilhados pelos leitores que apreciam esta tradição.
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