quinta-feira, junho 26, 2014

A festejar também se vive

Na véspera de S. João publiquei no Página 1, diário digital da Renascença o texto seguinte:

O património cultural português encerra, por vezes, manifestações que trazem pistas importantes
sobre como conviver e como comunicar saudavelmente em sociedade.
Conheço, desde pequeno, nos arredores do Porto, uma festa que põe durante um dia inteiro, mouros e cristãos a lutar, sem ser por isso uma festa violenta. É pouco dizer que a conheço desde criança. De facto, tal como muitos outras crianças, desde antes da escola que ela nos povoava o imaginário e nos punha a representá-la, a brincar e sonhar com ela, a falar dela, muitos antes e muito depois do dia da festa, o dia de S. João.
Ainda hoje isso acontece, apesar das brutais transformações da comunidade local dos últimos cinquenta anos, quanto aos estilos de vida, à economia e formas de trabalho, e às mentalidades e visões da vida e da sociedade.
A festa consegue falar eloquentemente de dimensões centrais e difíceis da vida quotidiana, sem quase precisar de palavras escritas ou ditas. Por exemplo: como resolver conflitos sem pegar tudo à paulada; como relacionar-se com quem é diferente sem pretender impor-lhe o que somos; como exercer e gerir o poder abrindo-o a quem merece tê-lo; ou, ainda, como viver com seriedade sem pôr de lado a crítica e o riso. A linguagem do mais complexo exprime-se e interpreta-se através do mais básico: o ritual, através da dança, da música, do ritmo e da cor.
Por um dia se recorda a memória dos tempos em que estas terras foram ocupadas pelos árabes; se faz a experiência de subverter e de refazer a ordem social; de pôr em cena pequenas peripécias dos trabalhos e dos dias, procurando linguagens para dizer quão profundas e quão mesquinhas elas por vezes se nos apresentam.

Falo da Festa da Bugiada e da Mouriscada de Sobrado, que acontece perto de Valongo, que conseguiu - e consegue ainda - não sem tensões e contradições, ressignificar-se nas condições da vida difícil dos tempos que correm, nomeadamente junto dos mais jovens. Para muitos vale o que aparece à superfície: uma banal luta entre o bem e o mal. Em Sobrado, porém, não é fácil dizer quem são os bons e quem são os maus. Porque os dois lados habitam cada um, numa tensão que se diria quase irresolúvel. Mais do que de bons e de maus, a Bugiada e a Mouriscada revela-nos, afinal, como pode conviver a identidade com a diferença. Não apenas conviver, mas também vivificar-se.

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