domingo, junho 09, 2013

(3) Como compreender a sobrevivência e revivificação da Bugiada?

Uma leitura possível para a sobrevivência e renovado vigor da Bugiada e Mouriscada poderia residir no esforço de preservação de uma tradição antiga e na sua apresentação como reconstituição histórica, para efeitos de memória e afirmação perante os forasteiros que visitam Sobrado.
Mas a verdade é que muitas outras terras tiveram tradições festivas riquíssimas - e escusamos de sair para fora do Município de Valongo – e viram-nas desaparecer uma atrás da outra.
Como vimos, o contexto económico e sociocultural do passado mudou radicalmente. A primazia da economia agrícola de subsistência e a cultura do mundo rural e a mundividência a ela associada ttransformaram-se. As relações sociais e a força dos valores e normas prevalecentes em gerações passadas debilitaram-se ou foram substituídas por outras. Seria lógico, por isso – ou pelo menos não seria de estranhar – que a Bugiada e a Mouriscada tivesse ficado pelo caminho, ou se arrastasse por Sobrado como um moribundo.
Isso não aconteceu. E a meu ver, tal deve-se, antes de mais, a dois factores indissociáveis: ao facto de a festa ter sido assumida como fazendo parte da identidade da comunidade local e, por outro lado, ao facto de esta festa e a sua vivência ter sido reinterpretada no quadro de valores e relações sociais dos novos tempos.
Em síntese e numa linguagem mais clara e direta, eu diria que esta festa continua a fazer-se porque as pessoas a sentem como fazendo parte de si e daquilo que são, individual e colectivamente. Por outro lado, porque as gerações mais novas fazem através dela a experiência da iniciação à cidadania em termos de integração e pertença à comunidade local.
Há casos que dizem bem da força e do papel da festa. Há cerca de 40 anos choveu tanto nas vésperas e no dia de S. João, que houve cheia do rio Ferreira. Pouca gente se atreveu a vir para Campelo ver as Danças de Entrada. Mas nem por isso Mourisqueiros e Bugios deixaram de dançar. O que tiramos daqui? Que o S. João de Sobrado não é, acima de tudo, um espectáculo para a multidão, mas, em primeiro lugar, uma experiência profunda para cada participante que, por alguma razão, diz – e sente – que vai dançar por paixão. É na verdade esta paixão, feita de sofrimento e entrega, que faz esta festa. Claro que há coincidências, mas terá sido por mero acaso que um Bugio idoso, um desses apaixonados que prefere dançar a subir na hierarquia do seu grupo, foi morrer exactamente na véspera de S. João e levado pelos seus pares à sepultura precisamente na manhã do grande dia?
Há anos, ia eu à procura do carro, para regressar a casa, no fim da Dança do Santo, e à minha frente caminhava um Mourisqueiro de barretina debaixo do braço, uma irmã e a mãe. Pude ouvir perfeitamente a conversa, porque dela não fizeram segredo: a irmã criticava o Mourisqueiro – que tinha aparentemente diante de si a possibilidade de iniciar o percurso para chegar a Reimoeiro – porque iria perder a namorada, se a deixasse sete anos à espera para casar. A solução seria ele ir viver com a noiva enquanto durasse a ascensão na cadeia hierárquica mourisca. Alguém em circunstâncias idênticas já o teria feito antes sem que tivesse sido penalizado. Mas o jovem que aspirava a ser rei, ainda que por um só dia, não estava pelos ajustes. “Ela que espere. Se é que me tem amor!”, dizia, convencido. E por aqui se vê também como a festa se entrecruza com a vida e pode interferir em opções de fundo. Com propriedade se pode, pois, dizer que a festa faz parte da própria vida. Mais ainda: a Bugiada e a Mouriscada é a festa da vida.
Antropologicamente ela é, além disso, o grande momento da hubris, do excesso, da transgressão e da comunhão com os elementos da natureza. Muitos forasteiros acham as cenas da Dança do Cego, por exemplo, de um primitivismo atroz e de uma violência dificilmente aceitável. Que diriam se soubessem que os papeis dos rituais agrícolas e da Sapateirada são superdisputados e que não falta quem queira espolinhar-se na lama e atirar excrementos aos circunstantes ou roçar-se neles com uma enxerga toda enlameada?!
(Crédito da segunda foto: Fábia Pinto)

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