quarta-feira, junho 12, 2013

(6) Quais são alguns dos desafios que a Festa de S. João de Sobrado enfrenta?


A festa da Bugiada e Mouriscada exprime a identidade dos sobradenses e, ao acontecer, refaz e actualiza essa mesma identidade. É uma grande manifestação comunicativa, em que a palavra é secundária e em que a mensagem e o sentido se produzem através do movimento, do corpo, do ritmo e da música, e em que a máscara ocupa um papel central.
Fica claro que não estamos, em Sobrado, perante um teatro, um desfile, um espectáculo ou uma reconstituição histórica. Se algo disso há na Bugiada e na Mouriscada, e em tudo o mais que faz esta festa, o que aqui temos é uma iniciação à vida social; uma aprendizagem da importância daquilo que hoje vale pouco, no mercado dos valores: a combatividade, a busca de sentido, a pertença a um grupo, a competição sadia, o diálogo com o diferente como via para cada um se tornar pessoa. O que não quer dizer que tudo isto seja vivido por todos ou seja vivido do mesmo modo ou pelos mesmos motivos.
Nunca fomos muito dados a reflectir e debater o sentido desta festa. E, no entanto, todos vibramos com ela. E dela poderíamos dizer algo parecido com o que Santo Agostinho disse, quando um dia lhe perguntaram o que era o tempo: “Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” É um pouco assim que se sente o sobradense a quem o repórter pergunta o que experimenta ao dançar ou ver dançar. Na melhor das hipóteses receberá como resposta: “é a paixão!”
Mas, sem grandes argumentos, sem grandes discursos, através da festa, os sobradenses conversam entre si, lá vão encontrando meio de conviverem uns com os outros. Não são certamente nem melhores nem piores do que os habitantes de outras terras, mas aprendem a ser gente à sua maneira.
Todos sabemos que os de Sobrado eram conhecidos nas terras circunvizinhas como uns tolos que fazem tudo ao contrário(*). Isto porque nos trabalhos do campo ritualizados na festa, começam por semear antes de lavrar e gradar. Mas também jantam o cozido ao princípio da manhã e vencem uma batalha não pela intercessão de S. João Batista, venerado nesse dia, mas de uma Serpe. Esta festa, como muitas outras festas tradicionais, opera por inversão. Por um dia vira as coisas e a vida do avesso. Por um dia um operário ou um comerciante podem ser reis. Mas do mesmo modo por um dia há quem delire a fazer de cego ou de mulher de sapateiro. No dia seguinte, a vida continua, mas nunca continua igual, porque se sai da festa com a alma lavada, com a sensação de ter vivido num dia o que um ano inteiro não permite.
Ao vermos, nos nossos dias, as tensões e as guerras entre os muçulmanos e os cristãos e as dificuldades do diálogo e da compreensão mútua entre os dois mundos, não deixa de ser espantoso ver como em Sobrado, Mouriscada e Bugiada – eles e nós; nós e os outros; o mesmo e o diferente – convivem, combatem, vencem e são derrotadas e, no fim, uma e outra excecutam a Dança do Santo. Não como vencedor e vencido, mas como agrupamentos diferentes, mas iguais em direitos, estatuto e dignidade . Em Sobrado, os Mouros não são convertidos, como, por exemplo, acontece no Auto de Floripes, contra os Turcos. E isto, poderíamos nós ler hoje, é um sinal interessante de diálogo intercultural, de convivência entre diferentes que se reconhecem iguais em dignidade.
No momento em que em Sobrado se descobre que a sua festa é uma manifestação valiosa de património cultural imaterial, vale a pena realçar os aspectos nela contidos, que a colocam em sintonia com grandes desafios do nosso tempo. Com a memória e a consciência do valor da herança que recebemos, queremos caminhar não a olhar para o passado, mas a enfrentar os reptos do futuro. E esses reptos do futuro
- passam pela preservação, o que supõe investir num núcleo museológico da festa da Bugiada e da Mouriscada;
- passam pela promoção, como tem estado a acontecer com o reconhecimento municipal, com o registo nacional e a candidatura à lista da UNESCO; e
- passa pelo estudo e pela investigação, já que esta festa nunca foi até hoje estudada de forma sistemática e em profundidade e, sem isso, nós não podemos dar o devido valor àquilo que temos.
Como observava Hélder Pacheco, num colóquio realizado em Sobrado, em Junho de 2006, a propósito da singularidade do S. João de Sobrado, “não afirmar esta diferença e esta identidade própria seria absolutamente fatal, no contexto de uma Europa cinzenta e carente de côr.”
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(*) Notícia de "O Vallonguense", nº1, de 29 de Junho de 1913:
"Realizou-se na passada terça-feira a festa de S. João Baptista. Houve as tradicionais danças dos 'Mouriscos e Bugios' sempre muito engraçadas e apimentadas. Não há meio de tirar esta antiga costumeira, tão enraizada está nos hábitos deste povo a quem chamam tolo; eu penso porém que mais tolos são aqueles que atravessando montes e vales o vêm apreciar. Tolos não, finos é que eles são, porque com suas artes pitorescas chamam grande número de forasteiros à sua terra".

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