Volto a reafirmar uma conjectura já aqui apresentada: estou persuadido de que, em tempos passados, a Festa de S. João de Sobrado tinha características muito distintas das que hoje tem. E que, muito provavelmente, aquilo que nela é hoje mais valorizado - as danças e luta entre Bugios e Mourisqueiros - não era próprio do dia de S. João, mas da festa de Corpus Christi (Corpo de Deus), instituída pela Igreja Católica no século XIII e que se tornou numa das maiores festas da cristandade, pelo menos em aparato e espavento públicos.
Procuro argumentar, mas, reconheço, ainda sem a necessária fundamentação, nomeadamente documental:
- Há descrições de festas de Corpus Christi - de Penafiel, que era sede de bispado, de Braga e, muito particularmente do Porto - em que nas respectivas procissões se representavam mouriscadas, bugiadas, danças e lutas várias, onde surgia o dragão ou a serpe. Tais procissões foram-se tornando, até ao século XVIII, espaço para manifestações não só de grande fervor religioso, mas também de expressão da criatividade e vibração populares.
- Muitas dessas expressões e números, da responsabilidade dos diferentes mesteres e corporações de ofícios, foram-se tornando, aos olhos das autoridades eclesiásticas, abusivas e licenciosas. Com a onda purificadora da Contra-Reforma pós-Concílio de Trento, muitas delas foram forçadas a sair da procissão de Corpus, extinguindo-se nuns casos; ganhando vida própria noutros, e noutros ainda "alojando-se" noutras festas próximas.
- Encontramos ainda hoje tradições que estiveram outrora incrustadas na procissão e que hoje são manifestações autónomas: é o caso da luta entre S. Jorge e o Dragão, na Festa da Coca, em Monção, que se realiza a seguir à procissão, em lugar próprio e autónomo; é o caso da Vaca das Cordas, em Ponte de Lima, que se faz na véspera de Corpus, ao fim do dia; é o caso de algumas tradições como a Dança do Rei David e o Carro das Ervas, que surge no dia de S. João em Braga.
- Será isto que se passou com o caso de Sobrado? É difícil, com os dados actualmente disponíveis, afirmá-lo. A documentação não existe. E falta encontrar nas fontes relacionadas com alguma festa de Corpus próxima o elo que a ligue àquela que é hoje (e pelo menos desde o século XIX) a tradição de Sobrado. Se houve a tradição de uma procissão de Corpus Christi em Sobrado, o mais certo é que nunca tenha tido uma projecção tal que nela figurassem Bugiadas ou Mouriscadas.
- Será que houve, em tempos antigos, alguma tradição de envolvimento de gente de Sobrado por exemplo na procissão do Porto ou de Penafiel? Precisamos de investigar mais e provavelmente nunca chegaremos a saber. Mas, se assim, fosse, daríamos força a uma ideia, já avançada há décadas pelo etnógrafo Benjamim Enes Pereira, segundo a qual a festa de Sobrado teria nos rituais da sementeira, na dança do cego, no ritual da fogueira e nas críticas sociais os elementos de uma festa típica do solstício de Verão, mais antiga do que as Bugiadas e Mouriscadas. Estas ter-se-iam "importado" da festa de Corpus, por não poderem mais nelas ser apresentadas. E, entretanto, terão adquirido uma vida própria e pujança tal que são hoje a faceta mais vistosa e impressionante desta tradição popular única em Portugal.
Sobre a trajectória da festa de Corpus Christi: AQUI.
(Notas escritas em dia de Corpus Christi; a gravura é do artista português Amadeo de Sousa-Cardozo e representa precisamente a procissão de Corpus Christi)
2 comentários:
O quanto aprendo aqui! Não tenho nenhum contributo a não ser o de agradecer estas suas considerações.Continuo a ter "a Bugiada" como a minha festa de S. João de eleição...Cumprimentos
Partilho da opinião da Raquel... o quanto se aprende aqui... Que a festa é uma amalgama de tradições, salta á vista de qualquer um, mas que as ligações possam estar tão ramificadas demostra a subtileza de pormenores, histórias cruzadas e quase labirinticas teorias em que está envolta. É uma pena que não se consiga estabelecer uma cronologia da festa e perceber ( ou tentar) entender de onde vem esta paixão que nos une ( sobradenses).
Enviar um comentário