sexta-feira, dezembro 30, 2011

Rodney Gallop (3) - A Prisão do Velho


"Começava agora a segunda parte da Mouriscada. Dois pequenos palanques de madeira tinham sido levantados no largo terreiro verde, a mais ou menos 70 metros [oitenta jardas] um do outro.
Os dois reis posicionaram-se nestes 'castelos, cada qual acompanhado por alguns dos respectivos seguidores devidamente escolhidos, e começaram a enviar um ao outro mensagens provocatórias, através de 'embaixadores' a cavalo. Ao mesmo tempo que cada embaixador arrancava para a sua tarefa com a mensagem sob a forma de um pedaço de papel ou de uma folha de plátano enfiados na espada, os guerreiros disparavam salvas de tiros com mosquetes de carregar pela boca cujo fumo subia no ar.
Eram já oito da noite e o sol baixava no horizonte. Chegou um momento em que a pólvora se extinguiu entre os Bugios, impossibilitando-os de continuarem a defender-se. Os Mouriscos puseram-se em formatura e marcharam para irem atacar o castelo daqueles. Por duas vezes desencadearam o assalto e nas duas vezes foram repelidos. Com o seu rei adiante, à terceira vez conseguiram tomar conta da escada. Houve breve escaramuça no pequeno palanque e o Rei Bugio, agora de máscara, podia ver-se escudado atrás dos seus homens. Pouco tempo depois o rei dos Mouros encontra-o e atira-o ao chão. Instaura-se um silêncio súbito. O monarca caído senta-se e os seus seguidores vão à vez dizer-lhe um adeus choroso, dando-lhe abraços enternecidos. De seguida, com um gesto imperial, o seu captor ordena-lhe que desça os degraus, os Mouriscos formam uma falange fechada e, ao som de uma marcha fúnebre, levam-no dali para fora. Com lágrmas e lamentações, os Bugios seguem-no de perto.
Por momentos sentimo-nos transportados para longe, no espaço e no tempo. Parecia que estamos a ver, com os nossos próprios olhos, o antiquíssimo cortejo fúnebre de Osíris. Se assim fosse, não deveríamos assistir igualmente à sua libertação das amarras da morte? A resposta não tardou a chegar. Num ponto afastado do terreiro registou-se uma súbita manobra. Da parte de baixo do seu 'castelo' um grupo de Bugios arrastou um 'dragão' descomunal grosseiramente feito de madeira e tela. Pegando na Serpe como se fosse uma máquina de guerra, carregaram sobre os Mouriscos ao som de gritos que ecoavam pelos ares. Estes abrem brechas sob efeito do terror, permitindo que o prisioneiro seja salvo pelos seus homens e levado em triunfo. Osíris morto voltara à vida e, agora, terminada a pantomina, faltava apenas a Dança do Santo para dar um final cristão a esta cerimónia pagã. Uma vez mais, as duas formações executaram as suas estranhas danças, desta vez em frente à igreja, em honra de S. João, assim encerrando um dos mais notáveis rituais que sobrevivem na Europa moderna".
(Continua)

terça-feira, dezembro 27, 2011

Rodney Gallop (2) - Bugios: seus trajes e sua dança

"Quando esta dança terminou os Mouriscos sairam do quinteiro a marchar em fila única. No portão cruzaram-se com um bando de figuras vestidas de modo ainda mais incongruente do que eles próprios. Os Bugios, como eram chamados, trajavam com capas de cores garridas, casaco tipo gibão cintado e abotoado e calça curta, pelo meio da perna (alugado, de facto, num figurinista de teatro do Porto). Todos usavam máscara, algumas com caras de animais e, na cabeça, traziam chapeus de cavaleiro adornados com fitas de papel e culminando numa cascata de fitas como aqueles que usavam os mascarados ingleses. Nas mãos, cada qual trazia algum objecto doméstico ou ligado à agricultura. Assim como os Mouriscos eram contidos e ordenados, estes eram um tanto rudes e violentos no comportamento. Com gestos selvagens e gritos rudes avançavam para o quinteiro, começando a dançar alinhados em duas filas, tal como os que os precederam.. A música, agora, consistia num pequeno fragmento de melodia indefinidamente repetido por duas rabecas e um violão.
O rei dos Bugios, o único que não ia mascarado, posicionava-se no centro. Usava uma barretina alta e emplumada e um manto eclesiástico de rico damasco encarnado debruado a ouro, com uma dobra sobre os ombros (foi-nos dito que o Rei Bugio tem um privilégio que consiste em poder escolher o seu vestido de entre as vestes ou adereços da igreja). Enquanto os seus seguidores saltavam desajeitadamente nos seus lugares, o rei convocava, à vez, cada um dos pares e mediante os gestos balanceados de um nigromante parecia transmitir-lhes perversas e secretas ordens. De seguida, levantando ligeiramente os braços e as mãos, despedia aquelas figuras meio encolhidas. Uma volta e um salto colocavam-nos no fim da fila. Se a dança anterior tinha todo o ar de preparação para uma batalha, esta estranha e ameaçadora performance trazia-nos à mente nada mais do que o 'dia das bruxas' e isto precisamente no dia em que a bruxaria é todo-poderosa. (...)"

Crédito da foto: Rei dos Bugios, desenho publicado na p. 173 da obra de R. Gallop.
(continua)

quinta-feira, dezembro 22, 2011

Rodney Gallop (1) - A Dança dos Mourisqueiros em 1932

Setenta e cinco anos depois de Rodney Gallup ter publicado a descrição antiga mais completa sobre a Festa de S. João de Sobrado, inicia-se aqui a publicação da parte respeitante a esta tradição, que vem no seu livro "Portugal, a Book of Folk Ways". Depois de apresentar danças mouriscas, danças de espadas e, em geral, danças rituais de diversas partes de Portugal, incluindo a Dança dos Pauliteiros, Rodney Gallop inicia a apresentação da Festa de S. João de Sobrado. Desta forma:
"Mais marcial na aparência é a extraordinária performance, que, sobre o nome promissor de Mouriscada, sobrevive ainda em Sobrado, perto de Valongo, e que mantém dois dos elementos que já desapareceram da procissão de S. João em Braga. Chegamos à aldeia de Sobrado pelas 6 horas da tarde do dia de S. João de 1932. Um largo relvado descia ligeiramente da estrada principal em direcção à igreja branca que se destacava de uma colina arborizada ao fundo, fulgurando sob os oblíquos raios de sol. Algumas tendas alinhavam-se a um canto, dominando uma atmosfera geral de rústica folia. Caminhando na direcção da igreja demo-nos conta de que a performance já tinha começado. Com espadas em riste, no punho das quais lenços brancos haviam sido atados, os Mouriscos estavam a dançar no quinteiro da casa do padre. Usavam fatos de algodão de cor clara com botões dourados e cintos vermelhos e faixas. Traziam na cabeça barretinas de cartão de cerca de 30 centímetros de altura, das quais pendiam pequenos espelhos, galões dourados e encimado por plumas vermelhas. Organizados em duas linhas compridas, de rostos graves e sérios, dançavam nos seus lugares, enquanto o seu rei, que se distinguia pelo uso de correntes douradas e dragonas, saltava de uma ponta para a outra da linha, dançando à vez com cada um dos pares dos seus homens. Uma figura cómica vestida de fato-macaco azul e com uma máscara feita de cortiça seguia-o pelo lado de fora imitando todos e cada um dos seus movimentos. A certa altura as duas linhas [de Mourisqueiros] desfazem-se, enrolam-se uma na outra como em espiral e disparam em direcções opostas. A única música consistia no monótono rufar do tambor que combinava com o silêncio e ar decidido dos dançarinos, a emprestar ao seu desempenho uma qualidade estranhamente sinistra, como que a pressagiar uma explosão de selvageria primitiva.(...)".
Rodney Gallop (1936/1961), Portugal a Book of Folk Ways. Cambridge University Press, pp. 171-172 [Continua]

terça-feira, dezembro 20, 2011

As origens militares das barretinas

Os trajes dos Mourisqueiros têm demasiadas parecenças com as fardas dos soldados napoleónicos e é provável que essa influência seja efectiva, no caso da Mouriscada. Um dos elementos importantes para essa comparação é certamente a chamada Barretina - uma forma cilíndrica debruado a cetim, rodeada de espelhos e encimada por plumas. O que se segue não é necessariamente nem vestígios da farda napoleónica nem sequer apenas traje francês. O formato e as plumas ou os seus vestígios surgem em várias outras tradições militares e algumas delas já são apenas peças de museu. Mas são importantes para contextualizar a nossa própria tradição (a imagem de comparação da festa de Sobrado é a que surge na foto em cima, à esquerda, neste blogue).

(Estas imagens foram seleccionadas a partir de uma pesquisa do termo "Shako" no Google Images. Aí se podem encontrar os sites de origem das fotos.

terça-feira, dezembro 13, 2011

Blog 'Bugios e Mourisqueiros': sete anos de vida

Não é um número redondo, mas é, digamos, um número bíblico: este blogue acaba de atingir sete anos de existência e de persistência (e não é propriamente por falta de material que não é mais assíduo na actualização). Em outros tempos, atingir os sete anos significava atingir a capacidade do "uso da razão". Será?
O objectivo que temos procurado concretizar não é apenas informar e reflectir sobre a Festa e outros aspectos com ela relacionados. Ao fazê-lo temos consciência de estar a criar um repositório e uma memória da Festa, o que, numa tradição popular que é tão parca em documentação histórica, é de grande relevância. Acresce que outros espaços congéneres que, em anos recentes, surgiram, desapareceram, entretanto. Os 330 posts até agora publicados aí estão, à consulta de quem se interessar.
Justifica-se, neste contexto, que dê a conhecer alguma informação acerca de quantos são e de onde vêm os visitantes deste espaço da Festa na Internet:
Registam-se até este momento, cerca de 39 mil visitas, das quais 2.500 oriundas do Brasil (cerca de 6,5%), seguido da França, com cerca de 870 (2,5%), dos Estados Unidos da América (441, equivalente a 1,15%) e da Espanha (352, ou seja 0,9%).
Os meses de Junho atingem sempre picos elevados de visitas, mas nunca como este ano, em que durante o mês da Festa 3474 pessoas vieram aqui parar. Nos restantes períodos do ano, a média ronda os 500 visitantes por mês.
Três em cada quatro visitantes descobrem ou demandam o blog Bugios e Mourisqueiros através de sites de pesquisa, dos quais aquele que é esmagadoramente mais utilizado (96%) é, naturalmente, o Google. O Facebook, certamente por causa do grupo específico criado em 2010, e a Wikipedia, por causa dos artigos que referenciam a festa, lideram os sítios de onde se chega a este blogue.
Obrigado pela visita!

segunda-feira, dezembro 12, 2011

Rodney Gallop - este nome diz-lhe alguma coisa?
Nos 75 anos de "Portugal, a Book of Folk Ways"

Provavelmente o nome Rodney Gallop não diz nada ao leitor. É possível que venha a ouvir falar dele se se concretizar a candidatura do "cante alentejano" a património imaterial da Humanidade, já que ele foi um dos etnógrafos que recolheu vários dos exemplares dessa forma de música popular, nomeadamente em "Cantares do Povo Português".
Mas a que propósito o trago aqui? Precisamente porque, num outro livro que publicou, intitulado (em inglês, e, tanto quanto sei, não foi traduzido)"Portugal, a Book of Folk Ways", que se poderia traduzir por "Caminhos do Folclore Português". Ora este livro faz em 2011 precisamente 75 anos que foi editado, o que é suficiente motivo para referir uma obra que dedicou várias páginas (pp. 171 a 175) à Festa de S. João de Sobrado. Deve-se-lhe, além disso, uma das imagens mais antigas que conhecemos dos Mourisqueiros sobradenses e um pequeno desenho inconfundível do Velho da Bugiada, o rei dos Bugios. Logo no prefácio, anota a singularidade e carácter único do caso do S. João de Sobrado ou quando escreve que "a Mouriscada de Sobrado e o Auto de Floripes não se encontram por aí em qualquer aldeia ou em qualquer dia do ano. Persistem como exemplos isolados de algo que pode ter estado mais generalizado no passado, mas que já não o está hoje".
A obra, editada pela Cambridge University Press, teve uma segunda edição em 1961, a qual contou com um subsídio do Instituto de Alta Cultura português. É ainda possível encontrar exemplares à venda, nas lojas online de livros usados. O seu autor foi um diplomata inglês que calcorreou Portugal em busca de tradições e músicas populares, de cujas recolhas nasceram vários livros. De resto percorreu igualmente a Espanha, especialmente o País Basco, e o México. Por Portugal andou no início dos anos 30, quando tinha pouco mais de 30 anos. Nasceu em 1901 e faceleu em 1948.

(Em próximos posts conto traduzir partes da sua escrita sobre a festa de S. João de Sobrado).

quinta-feira, dezembro 08, 2011

"O sonho de ser, um dia por ano, dono do mundo"

"O sonho é ir de bugio e a bugiada torna-o realidade. O sonho dos pobrs (e, como o sonhar também enche a barriga, contaram-me que, em Sobrado, um pai levava os filhos a dançar na bugiada para esquecerem a fome). Sonhos de momentos: danças, rituais insólitos, trajos inesperados, fantasias e sonoridades esquecidas. Castanholas e guizos. As cores berrantes, chamando a atenção: este é o meu sonho. E a máscara é presença omnipotente, chave da transmutação. /(Quem somos nós, que a vida é um instante?). Máscaras fantásticas, ocultando rostos. «Quem vai ali?» ninguém sabe, e o bugio não pára, a dançar, a dançar. A correr, a voar pela festa. «Ali vai a minha roupa de bugio». «Então emprestou a roupa?» «Pois! Ai que desgosto, ando aqui aleijado duma perna e num posso andar ós saltos. Bem me custa ver outros com a minha roupa e a minha máscara!». Perguntei a um bugio que descansava da corrida: «Foi você que fez o trajo?». «Eu num sei costurar, mandei-o fazer a uma costureira». «Há quatro anos que venho de bugio». Esta, sim, é a Festa. É o país dos encantamentos que resistem. É o sonho de ser, um dia por ano, dono do mundo. Feito bugio, escondido por detrás da máscara. É a alegrisa (e a dor?)". 
Helder Pacheco  
Nota sobre a Festa de S. João de Sobrado de 1986.
in O Grande Porto. [Novos Guias de Portugal]. Editorial Presença, Lisboa, 1986, p.165.
(No exemplar que me dedicou, o autor agradece o ter-lhe "desvendado o rosto desse país fantástico e terno que permanece na Bugiada de Sobrado").
(Crédito da foto: Marjoke Krom)

sábado, dezembro 03, 2011

A festa de S. João, as artes, os artistas

A riqueza antropológica, sociológica e estética da Festa de S. João de Sobrado, em todas as suas componentes, pode ser obecto de múltiplas abordagens. Há quem goste de investigar, de escrever, de conversar sobre a festa. Mas há (e pode haver muito mais) quem trate a festa do ponto de vista artístico - ficção, poesia, pintura, desenho, artes plásticas, música, design, multimédia. Algumas coisas começam a ser feitas, mas num estado ainda muito incipiente Como sonhar não custa, para além dos talentos que certamente existem em Sobrado e entre amantes da festa, porque não convidar artistas, escritores, ensaístas, para virem ver a festa e sobre ela criarem obras de arte?

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Entre 1750 e 1880:
danças da Bugiada também em Valongo


Ao longo de bem mais de cem anos, Valongo foi palco de uma grande festa que dois autores valonguenses, Francisco Ribeiro Seara e Lopes dos Reis, consideraram a "festa popular mais importante e mais signficiativa" do concelho e que incluía uma Dança da Bugiada.
Tive oportunidade de me referir a este facto aquando do acto comemorativo dos 175 anos da criação do concelho de Valongo, que decorreu na passada terça-feira, dia 29 de Novembro, numa iniciativa da Câmara Municipal, através do Arquivo Histórico do Município. E estou, naturalmente, a referir-me à festa de Santo António dos Almocreves, que tinha o seu momento alto no segundo domingo de Julho.
Que tradição era esta, então?

Uma festa dos almocreves

Podemos dizer que almocreve era o comerciante que, sozinho ou em grupo, percorria por vezes longos trajectos para levar e trazer mercadoria e, desse modo, assegurar o abastecimento dos aglomerados populacionais mais significativos. Desde a Idade Média até épocas não muito longínquas eles foram, no dizer de Borges de Macedo (1), «a coluna vertebral dos transportes internos».
A festa nasceu em 1750, no contexto de uma grande epidemia que começou a dizimar os animais de carga que eram "a alma de negócio" dos muitos almocreves de Valongo.
Ora, desde muito cedo, Valongo foi terra de almocreves que iam além-Marão e até ao Alentejo para abastecer as moagens de trigo e centeio e assim permitir a a panificação de que vivia boa parte da cidade do Porto. Já a Corografia Portugueza, publicada pela primeira vez em 1708, observava que Valongo (e mantemos a escrita da época) “[…) he povo grande e arruado habitado de muitas padeiras que sustentão o Porto de pão que elas lá levão a vender, e de muitos almocreves, que vivem de conduzir de muitas légoas o trigo para suas mulheres cozerem" (2).
Temos, pois, que a economia de Valongo vivia, em boa medida, dos almocreves e da panificação. E, aos olhos destes comerciantes Santo António foi decisivo para debelar o mal que deu nas bestas, pelo que decidiram honrá-lo e festejá-lo à altura do 'milagre' obtido.

Sumária descrição dos festejos

Seguindo a descrição que da festa faz, em 1904, o autor de "A Villa de Valongo", o P. Joaquim Alves Lopes dos Reis (3), os festejos arrancavam ainda no mês de Junho, na véspera de S. Pedro, dia em que se tornou tradição sair o Bando , que era um grupo de homens montados em jericos, à frente do qual seguia um pregoeiro a anunciar o programa que aí vinha. Mas era na quarta-feira anterior ao segundo domingo de Julho que o ambiente de folgança começava a animar-se. Nesse dia um burro percorria as ruas da terra distribuindo archotes que seriam usados na Cavalhada, na véspera da festa à noite. Esta Cavalhada metia bandas de música seguidas de cavaleiros com tochas a arder, o que deveria tornar o cortejo motivo de atracção. Houve quem visse neste acto um vestígio da procissão de agradecimento dos almocreves a Santo António.
No domingo da Festa, logo ao nascer do Sol, formava-se em casa do Juiz a Bugiada. Ao mais velho no ofício cabia designar o Juiz novo que era procurado e trazido na situação em que se encontrasse. Após isso, servia-se um lauto almoço. Deduz-se da descrição que nos chegou que havia, neste momento, a Dança dos Bugios. Só depois dela é que se formava o Tambo, um cortejo que se dirigia à igreja paroquial, onde se realizavam cerimónias religiosas. Findas estas, voltava a dançar a Bugiada em frente ao templo, a que se seguia o jantar. Diz-nos Lopes dos Reis que esta Dança da Bugiada junto à igreja era especialmente querida da população local, tal como a música que a acompanhava, a qual (a exemplo do que acontece em Sobrado, nos nossos dias) não podia ser tocada sem que as pessoas começassem a dançar também. Pelos vistos, a Dança da Bugiada de Santo António dos Almocreves tornou-se de tal modo marca da festa e valorizada pela população que havia gente importante que fazia questão de participar. E só quando a festa começou a decair é que a dança passou a ser participada sobretudo pela, digamos assim, arraia miúda.
A festa prosseguia na segunda-feira com o Jantar dos Cozinheiros participado por todos os que, de algum modo, tinham concorrido para a organização. E eram esses que, no fim do repasto, iam pelas ruas da vila, trajados de modo exótico (à turco, dizia-se), executando a Dança dos Odres. Dois dias depois, na quarta-feira,  a festa encerrava, finalmente, com actos na igreja, um jantar, desta vez pago já pelo Juíz novo, à porta do qual a Bugiada voltava a dançar pela terceira e última vez. Nesse dia à tarde, voltava-se a juntar muita gente da terra e de fora, porque havia como que a apoteose, com uma série de danças e entremeses, uma boa dúzia delas. À noite, ainda se realizava a Entrega do Santo, no qual, além dos membros das Cavalhadas, participava a mulher do Juiz velho, acompanhada de moças que empunhavam velas acesas.

Dois comentários

Este é um quadro rápido e sumário de uma festa rica e complexa que merecia ser mais investigada e estudada. Resta fazer duas ou três observações a propósito.
Em primeiro lugar, a festa entra em decadência na segunda metade do século XIX e acaba mesmo em 1880. E porquê? Lopes dos Reis não aborda o assunto, mas eu atrevo-me a deixar uma possível explicação. Em 1872, o Governo adjudica a construção da Linha (ferroviária) do Minho, a qual é aberta à circulação até Braga em 1875. Neste mesmo ano, entra em funcionamento um primeiro tramo da Linha do Douro, entre Ermesinde e Penafiel. A partir de então, estava aberta uma forma mais rápida e segura de viajar e fazer circular a mercadoria. O caminho de ferro, que representou um progresso extraordinário, representou o atestado de morte aos almocreves, pelo menos, nas zonas servidas pela rede ferroviária. O município de Valongo é, todo ele, à excepção de Sobrado, atravessado pelo comboio. Nesta nova situação, com os almocreves em crise e certamente á procura de novas formas de subsistência, não houve Santo António que lhes valesse e, assim, a festa desapareceu. Um pormenor curioso: as danças mais características da festa de Santo António, essas a população não as deixou desaparecer tão rapidamente: começaram a ser apresentadas na festa do padroeiro da vila de Valongo, S. Mamede. E isso prolongou-se por muitos anos.
A segunda observação é, naturalmente para chamar a atenção para uma série de sinais de aproximação entre a Festa de Santo António dos Almocreves de Valongo e o S. João de Sobrado. Claro: desde logo pelas danças da Bugiada e pelo papel de relevo que tinham na festa valonguense. Mas também pela música e o carinho que esta despertava na população e, finalmente, pelas "papeladas", que eram habitualmente, formas (escritas) de crítica social. De tudo isto encontramos algo em Sobrado. Muitas danças de Valongo, de resto, aparentam-se com manifestações típicas descritas nas procissões de Corpus Christi. O que me leva, de novo, a deixar no ar a hipótese de, tanto alguns aspectos das danças e lutas de Sobrado como várias das danças de Valongo poderem, em alguma fase do seu desenvolvimento, ter tido algum tipo de presença em alguma das procissões de Corpus que se fazia nesta região (nomeadamente no Porto e em Penafiel).
Muito que investigar e que estudar, por conseguinte.

Referências
(1) Borges de Macedo, J. "Almocreve" in Dicionário de História de Portugal (dir. de Joel Serrão)
(2) Costa, Ant. Carvalho da  (1708) Corografia Portugueza e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal, vol. II
(3) Reis, J. Alves Lopes dos  (1904) A Villa de Valongo. Porto:  Typographia Coelho (a vapor).