"Como, nos v/ textos, solicitam a colaboração de investigadores para ajudar a situar a origem da v/ tão bela tradição sanjoanina, ouso contactar com V. Excias. para dar a conhecer que, na minha obra “Danças populares do Corpus Christi de Penafiel”, recentemente publicada, dedico cerca de três páginas à mouriscada do Sobrado e às danças de Valongo do princípio do séc.XX. Aí expresso uma opinião convergente com a hipótese suscitada pelo meu amigo, o etnólogo Benjamim Pereira: a sua origem deve ser encontrada nas manifestações teatrais e coreográficas que outrora integravam as procissões do Corpo de Deus.
Após a proibição régia de 1724 e sobretudo por força da extinção das corporações em 1834, os elementos profanos dessas procissões (por então a mais grandiosa, variada e rica manifestação de religiosidade popular do reino) dispersaram-se por muitas ocasiões do calendário, designadamente para o Entrudo. Em Valongo transitaram para a festa de Sto. António, mais tarde S. Mamede, como se alcança do livro “A Villa de Valongo – suas tradições e história, descrição, costumes e monumentos”, do Pre. Joaquim Lopes, editado em 1904. O autor, a par das danças de Valongo (notoriamente decalcadas das do Corpus Christi, que aliás funcionavam como matriz para todas as outras manifestações religiosas processionais), apenas dedica à manifestação do Sobrado uma modesta nota de rodapé, do seguinte teor: “Em Sobrado, freguesia do concelho de Valongo, se fazem todos os anos no dia de S. João as danças da mourisca e da bugiada, que nada têm de comum com a de Valongo, tornando-se os seus bugios notáveis pelas momices que praticam e cabriolas altamente caricatas que fazem. Em saltar ninguém lhes ganha”.
Note-se que, na altura, transição do séc.XIX para o XX, o autor assinalou em Valongo, entre outras, a dança da bugiada e a dança dos odres com vestimentas turcas, as quais se perderam com o decurso do tempo. Muito para salientar é o plural que refere as danças do Sobrado (“as danças da mourisca e da bugiada”), o qual poderá ajudar a compreender a origem da actual representação numa fusão dessas duas danças mediante a introdução de uma trama teatral operada pela imaginação popular já em pleno séc.XX, posteriormente à publicação do livro em análise.
Através da análise etnográfica e histórica da evolução das danças populares do Corpus Christi e da sua transição para outros géneros de manifestações (fenómeno ocorrido em todo o país, como demonstro com exemplos variados), tudo conjugado com as informações da citada obra, termino da seguinte forma a minha referência à actual configuração da tradição sobradense: “Pelo exposto, estamos em crer que a mourisca e a bugiada do Sobrado não provinham de nenhuma procissão de Corpus Christi existente nessa localidade, mas sim de imitação das danças da bugiada e dos odres da vila de Valongo, estas sim, directamente procedentes de procissão de Corpo de Deus aí existente, por ser povoação mais importante que aquela, o que nos é inequivocamente demonstrado pela profusão e natureza das danças que ostentava no princípio do séc.XX, mas já aqui transitadas para a festa de Sto. António, mais tarde de S. Mamede”.
Como é evidente, isto em nada diminui o valor e a importância da tradição sanjoanina do Sobrado. Nesta matéria, o mais importante é onde e quem soube conservar e desenvolver as tradições, já que as localidades que as deixaram morrer ficam inexoravelmente esquecidas na poeira dos tempos, no que às mesmas diz respeito.
Para maior desenvolvimento do assunto, vide p. 60 a 62 da minha referida obra Danças Populares do Corpus Christi de Penafiel.
Espero ter dado alguma contribuição de interesse.
Para finalizar, informo que, quando fui coordenador do ciclo “Sons da Tradição” da Expo-98, tentei trazer a Lisboa a mouriscada do Sobrado, ideia que infelizmente não foi possível concretizar devido à escassez de verba atribuída às tradições populares em comparação com outros tipos de manifestações.
Envio as minhas melhores saudações.
José Alberto Sardinha
(Foto dos inícios dos anos 60 do séc. XX, publicada no jornal portuense Praça Nova)
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